RESUMO: O presente artigo faz uma análise sobre alguns aspectos da reserva de iniciativa do chefe do Poder Executivo para deflagrar o processo legislativo em determinadas matérias, sobretudo em relação a projetos que versem sobre matéria tributária ou aumento da despesa pública. O autor toma por base discussões travadas no exercício de sua atividade profissional (é Agente Legislativo com atribuição de assessoramento da Comissão de Constituição, Legislação e Justiça da ALEPE), e analisa a viabilidade ou não de projetos de lei de iniciativa de parlamentares tratarem sobre certas matérias, como as acima citadas.
Palavras-chave: Separação de Poderes. Reserva de iniciativa para iniciar o processo legislativo. Princípio da Simetria. Matéria Tributária. Aumento de despesa em projeto de iniciativa parlamentar.
1.INTRODUÇÃO
O presente estudo é fruto de pesquisa realizada na área do Direito Constitucional, com análise centrada na separação de poderes e na extensão da reserva de iniciativa garantida ao Chefe do Poder Executivo para determinados assuntos, mormente no que se trata de projetos que envolvam matéria tributária e aumento de despesa pública.
O autor teve contato mais aprofundado com o tema em virtude de sua atuação profissional, já que ocupa o cargo de Agente Legislativo na ALEPE, prestando assessoramento à Comissão de Constituição, Legislação e Justiça daquela casa. A Constituição do Estado de Pernambuco até o momento da elaboração do presente ensaio garante ao Governador do Estado a reserva de iniciativa para projetos que envolvesse matéria tributária e também aumento da despesa pública, em descompasso com a ordem constitucional vigente e com a jurisprudência do STF, conforme se demonstrará a seguir.
2. DESENVOLVIMENTO
Inicialmente, pertinente trazer à colação o texto da Constituição do Estado de Pernambuco em dispositivo que trata da reserva de iniciativa do Governador do Estado:
Art. 19. A iniciativa das leis complementares e ordinárias cabe a qualquer membro ou Comissão da Assembleia Legislativa, ao Governador, ao Tribunal de Justiça, ao Tribunal de Contas, ao Procurador-Geral da Justiça, ao Defensor Público-Geral do Estado e aos cidadãos, nos casos e formas previstos nesta Constituição.
§ 1º É da competência privativa do Governador a iniciativa das leis que disponham sobre:
I - plano plurianual, diretrizes orçamentárias, orçamento e matéria tributária;
II - criação e extinção de cargos, funções, empregos públicos na administração direta, autárquica e fundacional, ou aumento de despesa pública, no âmbito do Poder Executivo
Em relação a reserva de iniciativa em si, cabe destacar que o artigo 61, § 1º, da CF/88 enumera competências reservadas de forma privativa ao Presidente da República em matéria de iniciativa para projetos de lei. O STF tem decidido, de forma reiterada, que tal reserva de iniciativa também deve ser garantida aos Governadores e Prefeitos, no âmbito dos Estados e Municípios. Aplica-se, no entender da Corte, o Princípio da Simetria nessa questão. Vejamos:
PROCESSO LEGISLATIVO – INICIATIVA. Ao Chefe do Executivo estadual compete a iniciativa de projetos de lei versando estrutura administrativa, a teor dos artigos 61, § 1º, inciso II, alínea “e”, e 84, inciso VI, alínea “a”, da Constituição Federal, aplicáveis, por simetria, às unidades federativas. BENEFÍCIO – PARÂMETRO – SALÁRIO MÍNIMO – VINCULAÇÃO – IMPOSSIBILIDADE – INTERPRETAÇÃO CONFORME À CONSTITUIÇÃO FEDERAL. É constitucional referência ao salário mínimo contida em norma de regência de benefício assistencial como a fixar valor unitário na data da edição da lei, vedada vinculação futura como mecanismo de indexação.[1]
Lei estadual que prevê a obrigação de identificação do usuário no fardamento, o fornecimento gratuito dos uniformes e a fiscalização do cumprimento da Lei à Secretaria Estadual. Vício de inconstitucionalidade formal dos arts. 3º, 4º e 6º da Lei estadual, por violarem o art. 84, inc. VI, a, e o art. 61, §1º, inc. II, e, ambos da CF/88. Inconstitucionalidade, por arrastamento, dos art. 7º, 8º e 9º da Lei estadual. 4. Pedido da ação direta julgado parcialmente procedente, com a fixação da seguinte tese: “Padece de inconstitucionalidade formal lei de iniciativa parlamentar que disponha sobre atribuições de órgãos da Administração Pública (art. 61, § 1º, II, "e" e art. 84, VI, da Constituição Federal).[2]
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE[3]. CONSTITUIÇÃO DO ESTADO DE RONDÔNIA. LIMITES SOBRE O NÚMERO DE SECRETARIAS DE GOVERNO E RESPECTIVOS CARGOS. INADMISSIBILIDADE. VÍCIO DE INICIATIVA. 1. Os Estados-membros, na elaboração de seu processo legislativo, não podem afastar-se do modelo federal ao qual devem sujeitar-se obrigatoriamente (...)
Acontece que, a única menção a “matéria tributária” existente no art. 61 da CF encontra-se no seguinte dispositivo:
“b) organização administrativa e judiciária, matéria tributária e orçamentária, serviços públicos e pessoal da administração dos Territórios;”
Analisando o dispositivo, e partindo da premissa de que normas restritivas, como as do artigo 61, devem ser interpretadas restritivamente, o STF já se posicionou no sentido de que a reserva de iniciativa ao Chefe do Executivo para tratar sobre matéria tributária somente é aplicável nos Territórios Federais, de forma que, no âmbito da União, e, consequentemente, dos Estados e Municípios, não há reserva para que apenas o Chefe do Executivo trate do tema. Assim decidiu o Supremo, inclusive criando tese de Repercussão Geral:
A reserva de lei de iniciativa do chefe do Executivo, prevista no art. 61, § 1º, II, b, da Constituição, somente se aplica aos Territórios federais. [4]
A norma não reserva à iniciativa privativa do presidente da República toda e qualquer lei que cuide de tributos, senão apenas a matéria tributária dos Territórios. [5]
Quanto à questão do aumento de despesa no âmbito do Poder Executivo, também não consta do rol do artigo 61 qualquer menção a este tema. O Supremo já foi chamado a decidir a questão, e, em sua jurisprudência majoritária, entende que NÃO há, de fato, reserva de iniciativa ao Chefe do Poder Executivo para deflagrar o processo legislativo em casos que possam gerar aumento de Despesa no âmbito do Poder Executivo. Desta forma, para o STF, com julgado fixando tese de Repercussão Geral, inclusive, é viável lei de iniciativa parlamentar que acarrete aumento de despesa. Vejamos:
“Não procede a alegação de que qualquer projeto de lei que crie despesa só poderá ser proposto pelo chefe do Executivo. As hipóteses de limitação da iniciativa parlamentar estão previstas, em numerus clausus, no art. 61 da Constituição do Brasil – matérias relativas ao funcionamento da administração pública, notadamente no que se refere a servidores e órgãos do Poder Executivo. Precedentes. [6]
“Não usurpa a competência privativa do chefe do Poder Executivo lei que, embora crie despesa para a administração pública, não trata da sua estrutura ou da atribuição de seus órgãos nem do regime jurídico de servidores públicos. [7]
A criação, por lei de iniciativa parlamentar, de programa municipal a ser desenvolvido em logradouros públicos não invade esfera de competência exclusiva do chefe do Poder Executivo. [8]
A pergunta que se faz, então é: pode, portanto, o parlamentar apresentar qualquer tipo de proposta que acarrete um aumento de despesa ? A resposta certamente é negativa, já que as matérias listadas no rol do artigo 61 da Constituição Federal, como explicado acima, devem ser observadas também em âmbito Estadual. Desta forma, Projeto de Lei de autoria de Deputado Estadual que trate de servidores públicos, ou que gere novas atribuições ou que trate sobre a organização e funcionamento da Administração Pública Estadual, estão eivados de vício de inconstitucionalidade.
Sendo assim, eventual Projeto que trate de mudança remuneratória de determinada carreira do serviço público ou que crie um novo programa de governo que demande atuação de órgãos e entidades da Administração Pública de determinada maneira, continuarão sendo inconstitucionais, não por aumentarem despesa, mas sim por esbarrarem nos demais dispositivos previstos no artigo 61 da CF/88 e artigo 19 da Constituição do Estado de Pernambuco.
Imprescindível explicitar, também, que quando o projeto seja daqueles reservados à iniciativa de determinado ator (seja o Chefe do Executivo, o Tribunal de Contas, o PGJ, o presidente do TJ), não é cabível emenda parlamentar ao projeto de lei que acabe por acarretar aumento da despesa inicialmente prevista. conforme prevê a Constituição Federal e conforme entende o STF, quando da realização de Emendas, de iniciativa parlamentar, a projetos de Lei que tratem de matéria reservada a outros poderes, não se admite criação de aumento da despesa originalmente prevista no Projeto. Vejamos os dispositivos constitucionais e as decisões do STF, com tese de Repercussão Geral firmada:
“Art. 63. Não será admitido aumento da despesa prevista:
I - nos projetos de iniciativa exclusiva do Presidente da República, ressalvado o disposto no art. 166, § 3º e § 4º;
II - nos projetos sobre organização dos serviços administrativos da Câmara dos Deputados, do Senado Federal, dos Tribunais Federais e do Ministério Público.”
Dispositivos resultantes de emenda parlamentar que estenderam gratificação, inicialmente prevista apenas para os professores, a todos os servidores que atuem na área de educação especial. Inconstitucionalidade formal. Arts. 2º e 63, I, da CF. [9]
As normas constitucionais de processo legislativo não impossibilitam, em regra, a modificação, por meio de emendas parlamentares, dos projetos de lei enviados pelo chefe do Poder Executivo no exercício de sua iniciativa privativa. Essa atribuição do Poder Legislativo brasileiro esbarra, porém, em duas limitações: a) a impossibilidade de o Parlamento veicular matérias diferentes das versadas no projeto de lei, de modo a desfigurá-lo; e b) a impossibilidade de as emendas parlamentares aos projetos de lei de iniciativa do presidente da República, ressalvado o disposto no § 3º e no § 4º do art. 166, implicarem aumento de despesa pública (inciso I do art. 63 da CF). [10]
E no que toca aos projetos que versem sobre matéria tributária, o leitor pode estar se indagando, estes podem ser apresentados de forma irrestrita pelos parlamentares, de acordo com a jurisprudência do STF ? A resposta também é negativa. Assim prevê o artigo 113 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) da Constituição Federal:
Art. 113. A proposição legislativa que crie ou altere despesa obrigatória ou renúncia de receita deverá ser acompanhada da estimativa do seu impacto orçamentário e financeiro. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 95, de 2016)
Chamado a decidir a respeito da abrangência de tal dispositivo, o STF entendeu que o art. 113 do ADCT é aplicável a todos os entes da Federação e a opção do Constituinte de disciplinar a temática nesse sentido explicita a prudência na gestão fiscal, sobretudo na concessão de benefícios tributários que ensejam renúncia de receita. Foi a seguinte a tese fixada pelo STF:
“É inconstitucional lei estadual que concede benefício fiscal sem a prévia estimativa de impacto orçamentário e financeiro exigida pelo art. 113 do ADCT”[11]
Assim sendo, conforme pode ser percebido da leitura do dispositivo constitucional e da decisão do STF, qualquer projeto de lei, mesmo de iniciativa parlamentar, que seja apresentado com o intuito de conceder renúncia de receita ou criar ou alterar despesa obrigatória, deve conter a prévia estimativa de impacto orçamentário e financeiro, sob pena de ser considerado inconstitucional.
Frise-se, ademais, que tal exigência, junto com outros requisitos, já são previstos na Lei de Responsabilidade Fiscal (LC 123/2001), de forma que são consideradas não autorizadas, irregulares e lesivas ao patrimônio público a geração de despesas ou assunção de obrigações que não atendam o dispositivo nos artigos 16 e 17 da lei supracitada. Da mesma forma, o artigo 14 da referida lei também traz regras atinentes à concessão de benefícios fiscais.
Desta forma, após a Emenda Constitucional nº 95/2016 (conhecida como PEC do Teto de Gastos), que acrescentou o artigo 113 ao ADCT da CF/88, não apenas devem ser observados os requisitos da LRF, como qualquer Projeto de Lei que conceda benefício fiscal ou crie/altere despesa obrigatória será considerado inconstitucional, caso não seja acompanhado de estimativa do impacto orçamentário e financeiro.
3. CONCLUSÃO
Ante todo o exposto, percebe-se que a Constituição do Estado de Pernambuco, no que reserva ao Governador do Estado a iniciativa exclusiva para apresentar projetos de lei e de Emenda à Constituição que versem sobre matéria tributária e aumento de despesa da Administração Pública estão em descompasso com os dispositivos da CF/88 e também com o entendimento do Supremo Tribunal Federal.
Assim sendo, no entendimento deste autor, a medida correta do ponto de vista jurídico seria a modificação dos dispositivos da CE/PE que preveem tal reserva, de forma a garantir aos parlamentares a prerrogativa de tratar de tais assuntos, como ocorre em âmbito federal e nos outros Estados da federação. Frise-se, ademais, que tal modificação não representaria uma anarquia ou uma gastança desenfreada, haja vista que as demais normas relativas ao processo legislativo, por óbvio, devem ser observadas, como citado ao longo do artigo.
REFERÊNCIAS
ADI 4726, Relator(a): MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, julgado em 11/11/2020, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-282 DIVULG 27-11-2020 PUBLIC 30-11-2020
ADI 3981, Relator(a): ROBERTO BARROSO, Tribunal Pleno, julgado em 15/04/2020, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-124 DIVULG 19-05-2020 PUBLIC 20-05-2020
ADI 102/RO, Tribunal Pleno, rel. Maurício Corrêa, DJ de 29.11.2002.
ADI 2.447, rel. min. Joaquim Barbosa, j. 4-3-2009, P, DJE de 4-12-2009.
ARE 743.480 RG, voto do rel. min. Gilmar Mendes, j. 10-10-2013, P, DJE de 20-11-2013, Tema 682.
ADI 3.394, rel. min. Eros Grau, j. 2-4-2007, P, DJE de 15-8-2008.
ARE 878.911 RG, rel. min. Gilmar Mendes, j. 29-9-2016, P, DJE de 11-10-2016, Tema 917.
RE 290.549 AgR, rel. min. Dias Toffoli, j. 28-2-2012, 1ª T, DJE de 29-3-2012.
RE 745.811 RG, rel. min. Gilmar Mendes, j. 17-10-2013, P, DJE de 6-11-2013, Tema 686.
ADI 3.114, rel. min. Ayres Britto, j. 24-8-2005, P, DJ de 7-4-2006.] = ADI 2.583, rel. min. Cármen Lúcia, j. 1º-8-2011, P, DJE de 26-8-2011
STF. Plenário. ADI 6303/RR, Rel. Min. Roberto Barroso, julgado em 11/3/2022
[1] ADI 4726, Relator(a): MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, julgado em 11/11/2020, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-282 DIVULG 27-11-2020 PUBLIC 30-11-2020
[2] ADI 3981, Relator(a): ROBERTO BARROSO, Tribunal Pleno, julgado em 15/04/2020, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-124 DIVULG 19-05-2020 PUBLIC 20-05-2020)
[3] (ADI 102/RO, Tribunal Pleno, rel. Maurício Corrêa, DJ de 29.11.2002).
[5] ARE 743.480 RG, voto do rel. min. Gilmar Mendes, j. 10-10-2013, P, DJE de 20-11-2013, Tema 682.
[7] ARE 878.911 RG, rel. min. Gilmar Mendes, j. 29-9-2016, P, DJE de 11-10-2016, Tema 917.
[8] RE 290.549 AgR, rel. min. Dias Toffoli, j. 28-2-2012, 1ª T, DJE de 29-3-2012.
[9] RE 745.811 RG, rel. min. Gilmar Mendes, j. 17-10-2013, P, DJE de 6-11-2013, Tema 686.
[10] ADI 3.114, rel. min. Ayres Britto, j. 24-8-2005, P, DJ de 7-4-2006.] = ADI 2.583, rel. min. Cármen Lúcia, j. 1º-8-2011, P, DJE de 26-8-2011
[11] STF. Plenário. ADI 6303/RR, Rel. Min. Roberto Barroso, julgado em 11/3/2022
Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito do Recife da UFPE, Pós-Graduado em Direito Constitucional pela Universidade Cândido Mendes, Advogado e ocupante do cargo efetivo de Agente Legislativo da Assembleia Legislativa do Estado de Pernambuco, onde assessora a Comissão de Constituição, Legislação e Justiça.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MENEZES, Raul Queiroz de. Iniciativa privativa do chefe do Executivo no processo legislativo: uma análise crítica da Constituição do Estado de Pernambuco Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 20 fev 2023, 04:26. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos /61082/iniciativa-privativa-do-chefe-do-executivo-no-processo-legislativo-uma-anlise-crtica-da-constituio-do-estado-de-pernambuco. Acesso em: 29 dez 2024.
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